Francisco é papa: pressentimento e ressentimento. Artigo de Andrea Grillo
Um tutor alemão para o Papa Francisco? É muita presunção do card. Muller...
. Andrea
Grillo –
Terça, 14 de abril de 2015
Até
agora, ninguém havia teorizado, a partir do próprio centro da Cúria
Romana, uma exigência de “normalização do
pontificado”, como se depreende das palavras citadas do prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé Congregação
para a Doutrina da Fé.
Acredito
que aqui se deva constatar com preocupação que esse parece ser, até agora, o
mal-entendido mais substancial – ao mesmo tempo – dos pontificados de João
XXIII e
de Francisco, curiosamente unificados pela característica de ter “pouca
estrutura teológica”.
A análise é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da
Abadia de Santa Giustina, em Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come
Se Non, 09-04-2015. A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
Eis o texto.
No sítio Vatican Insider, assinada por Andrea Tornielli, lemos no dia 7
de abril a notícia que transcrevo aqui, literalmente:
O cardeal alemão, em uma entrevista
concedida ao jornal francês La
Croix, declarou: “A chegada à Cátedra de Pedro de
um teólogo como Bento
XVI é
provavelmente uma exceção. João
XXIII também
não era um teólogo de ofício. O Papa
Francisco também
é mais pastor e a Congregação
para a Doutrina da Fé tem
uma missão de estruturação teológica do Pontificado”. Assim, pois, segundo a
declaração de Müller,
o ex-Santo Ofício deve “estruturar
teologicamente” o
Pontificado do Papa
Francisco. E é provável que este seja um dos
motivos pelos quais o prefeito intervenha tão frequentemente em público, algo
sem precedentes na história.
Trata-se de uma significativa
novidade, posto que segundo o artigo 48 da Constituição
Apostólica sobre a Cúria Romana Pastor Bonus,
promulgada por João
Paulo II em
1988, “o trabalho próprio da Congregação
para a Doutrina da Fé é
promover e tutelar a doutrina da fé e os costumes em todo o orbe católico”.
Ao passo que o Papa “por vontade do
próprio Cristo”, como recordou também Francisco durante
o encerramento do Sínodo de 2014,
é o “Pastor e Doutor supremo de todos os fiéis” (cânon 749). Até poucas décadas
atrás (o último que o havia feito foi Paulo
VI) era o próprio Pontífice que
presidia pessoalmente a Congregação
para a Doutrina da Fé, justamente em razão desta tarefa
que só recai sobre o Pontífice, em virtude do primado petrino. Um primado que
pertence ao Bispo de Roma:
presidir “na caridade” e, caso surgissem, também dirimir questões teológicas.
As palavras do cardeal Müller,
com a introdução da inédita e até agora não formalizada tarefa de“estruturar
teologicamente um Pontificado”, passaram quase
despercebidas. Mas, se por um lado abrem cenários novos com respeito à tradição
da Igreja, por outro lado, parecem dar a entender que, segundo Müller,
o atual Pontificado (assim como o de São
João XXIII) não tem suficiente “estrutura”
teológica.
[A IHU
On-Line publicou aqui a
íntegra da notícia de Tornielli.
E também a íntegra da entrevista com Dom
Müller, aqui.]
Diante dessas palavras, que nos
deixam, para dizer pouco, perplexos, é preciso nos determos brevemente sobre a
avaliação do “fenômeno
Francisco” a
partir de dois ângulos diferentes, que ilustram de modo muito instrutivo o
percurso pelo qual a consciência eclesial passou nos últimos dois anos.
O pressentimento eclesial
Há cerca de um ano, no primeiro
aniversário da eleição do novo papa, Marciano Vidal,
em uma bela entrevista concedida a F. Strazzari e L. Prezzi, publicada com o título
“A moral: da escolástica aos pobres” (revista Settimana,
6 [2014], p. 8-10), fazia estas esclarecedoras observações:
.
“Só pessoas muito otimistas e
dotadas de um grau bastante elevado de ingenuidade poderiam dizer que se
prospectava a renúncia de Bento
XVI. Quanto à eleição do cardeal Bergoglio a
papa, ela podia ser prevista por analistas sagazes que conhecessem o que
aconteceu no conclave anterior, no qual foi eleito papa o cardeal Ratzinger,
e tivessem tomado nota das orientações que apareceram nas discussões
cardinalícias prévias ao último conclave. Mas estou convencido de que nem mesmo
esses especializados analistas chegaram a prever o terremoto no sentir eclesial
causado pela primeira apresentação do Papa
Francisco na
varanda escancarada para a Praça
de São Pedro: abandono de alguns paramentos de
identificação papal, convite à oração comum. Seguramente, não previram o que
aconteceu em seguida.
“No entanto, se o fenômeno Francisco teve
um significado tão amplo, é porque esse significado foi reconhecido. E, se foi
reconhecido, é porque, em grande parte, era esperado, porque era pressentido.
Eu não quero fazer jogos de palavras. Quero identificar uma chave de leitura
para compreender o fenômeno Francisco no atual momento eclesial. É a maturidade
eclesial que explica em grande parte esse fenômeno. O modo de realizar o
ministério petrino por parte do Papa Francisco não vai contra a corrente, nem
precisa ser justificado ou explicado. É algo que se desejava e que, por parte
de um bom número, se esperava.
“Há também uma geração bastante
ampla de católicos que haviam sido tocados pela ilusão de João
XXIII e
pela profunda experiência eclesial (teológica, litúrgica, espiritual, pastoral)
do Concílio
Vaticano II. Aquilo que eles veem no Papa
Francisco lhes
parece ser a realização naturalmente em forma atualizada daquele sonho
primaveril dos anos 1960.
Eu acredito que o Papa Francisco é
o fruto maduro do Concílio Vaticano II. Vejo-o maduro porque ele toma como
óbvio aquele espírito e não se sente obrigado a justificar a sua implementação,
recorrendo a textos conciliares específicos. Aqueles que hoje bendizem a Deus
pelo modo de agir do papa são os continuadores daquela chamada maioria
conciliar que, desde a primeira sessão conciliar de 1962, começou a entrever
algo de novo.
Não quero pensar que a dura e
poderosa minoria conciliar da época encontra o seu paralelo nos setores
católicos (e não católicos) críticos diante de certos gestos (por exemplo,
lavar os pés de uma mulher, além do mais muçulmana, durante o rito da
Quinta-Feira Santa) e diante de algumas expressões (“Quem sou eu para julgar!”)
do novo papa.
“Passou muito tempo entre as
esperanças suscitadas pelo Vaticano
II e
o seu cumprimento. É isso, pelo menos, o que parece para muitos de nós que, nos
tempos do Concílio, tinham entre 25 e 30 anos. Para
muitos destes, os tempos do pós-Concílio foram tempos inclementes e de gelo –
anunciados pelo grande teólogo Karl Rahner.
A corda que impedia a renovação
vinha se apertando cada vez mais ao redor de teólogos, pastoralistas,
comunidades de base. A corda tinha sido puxada demais. Havia indícios de que a
situação era insuportável. Justamente por isso, o fenômeno Papa Francisco, sem
poder ser totalmente previsível, certamente era desejado e pressentido. Foi
visto e aceito, por uma parte, como uma libertação e, por outra, como a
realização de uma promessa.”
Vindo de um homem nascido em 1937,
que dedicou toda a sua vida à fé e à teologia, esse balanço do primeiro ano do
Papa Francisco, então, assumia um significado totalmente
singular. Acima de tudo, era preciso notar a bela intuição de referir o “fenômeno Francisco” a um pressentimento eclesial, ou seja,
à esperança e ao desejo de uma Igreja madura, filha da grande temporada
conciliar de 50 anos atrás.
O primeiro papa “filho do Concílio”
não era apenas o fruto do Espírito Santo, que com liberdade soberana orienta e
guia a vida dos fiéis, mas também o filho de uma Igreja que não se esquecia da
irreversibilidade da graça da sua própria história. Parece-me que, a quase um
ano da sua eleição, o Papa Francisco podia ser justamente compreendido como
essa surpresa e como essa confirmação.
Pelo mesmo motivo, uma segunda
razão, expressa então por Vidal,
me parece que deve ser sublinhada: o Papa
Francisco não
precisava justificar a si mesmo, na sua novidade, mas podia simplesmente ser
filho de uma Igreja que, 50 anos antes, havia conhecido a possibilidade de uma
renovação e de uma atualização, de uma reforma e de uma primavera, que agora
pode ser facilmente reconhecida nas palavras e nas obras, nas ações e nas
omissões do novo bispo de Roma.
A práxis simples com que Francisco começa os seus dias – concelebrando a
eucaristia e sempre proferindo a homilia – são, no plano litúrgico, as mais
evidentes confirmações dessa “normalidade surpreendente”.
Restava, evidentemente, a questão
decisiva, talvez: se foi também a maturidade eclesial que pôde reconhecer em
Francisco o próprio papa, essa
mesma Igreja saberá não decepcionar Francisco no seu impulso alegre e
bendizente, no seu desejo ardente de abrir portas e janelas, de sair da
autorreferencialidade, de correr para as periferias?
A Igreja, que reconheceu em Francisco o papa que ela esperava e que, a seu
modo, tinha preparado, saberá se fazer reconhecer por Francisco como aquele
“campo de refugiados” em que a misericórdia de Deus se torna acessível a toda
mulher e a todo homem?
O ressentimento curial
À distância de mais de um ano
daquele fatídico 13 de março, aparecem como sinais evidentes – ao lado dos
pressentimentos confirmados pelo sentimento generalizado de gratidão e do “sensus ecclesiae” maravilhado e admirado com a eficácia
do novo pastor – as resistências, os fechamentos, as oposições, que chegam a
assumir a forma de um verdadeiro “ressentimento”.
Ele pode se expressar na forma de
um “desconforto” não dissimulado diante de uma poderosa “profecia do alto”: o
cristão individual, o presbítero, até o bispo, encontram-se continuamente
ultrapassados por aquele “tomar a iniciativa” de um bispo Roma que não se
deixar encaixar em qualquer lógica estática.
Mas tais ressentimentos também
podem se expressar simplesmente em uma “leitura superficial” do fenômeno: ou
seja, através de uma embaraçosa desvalorização da linguagem e dos conteúdos do Papa Francisco, considerados
“simples” demais ou até “simplistas” demais, sem conseguir minimamente
reconhecer que, ao contrário, a qualidade “diferente” da linguagem e dos gestos
de Francisco é mais complexa e mais rica, mais profunda e mais surpreendente do
que a “administração ordinária” episcopal e presbiteral.
No entanto, até agora, ninguém
havia teorizado, a partir do próprio centro da Cúria Romana, uma exigência de
“normalização do pontificado”, como se depreende das palavras citadas do
prefeito da Congregação
para a Doutrina da Fé.
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Acredito que aqui se deva constatar
com preocupação que esse parece
ser, até agora, o mal-entendido mais substancial – ao mesmo tempo – dos pontificados de João XXIII e de Francisco, curiosamente unificados pela característica de ter “pouca estrutura teológica”.
ser, até agora, o mal-entendido mais substancial – ao mesmo tempo – dos pontificados de João XXIII e de Francisco, curiosamente unificados pela característica de ter “pouca estrutura teológica”.
Aquilo que é um aumento objetivo da
doutrina eclesial e da profecia evangélica dos últimos 60 anos é lido,
justamente pelo prefeito da Congregação
para a Doutrina da Fé, como “falta de
estrutura teológica”.
Esse julgamento, tão injusto e
distorcido, coloca um sério problema eclesial, que não pode ser ignorado.
Certamente, não é a primeira vez que se cria uma tensão entre o prefeito do Santo Ofício e o bispo de Roma.Pensemos naquilo que
tinha acontecido há muitos anos entre Ottaviani e Paulo VI;
mais recentemente, entre Ratzinger e João Paulo
II. Mas ninguém jamais tinha sequer remotamente querido
teorizar que a Congregação
do Santo Ofício tivesse
que “dar estrutura teológica” a um pontificado.
O “pressentimento” que permitiu que
se reconhecesse o golpe Francisco como papa, evidentemente, ainda não entrou em
alguns “sagrados palácios”, que,
assim, estão desprovidos de “pressentimento”, a ponto de chegar a teorizar uma
Congregação para a Doutrina da Fé que garanta uma “continuidade
doutrinal” a despeito
da profecia e da parrésia [franqueza] de um pontífice.
As formas com que a ausência de
pressentimento sabe se inverter em amargo ressentimento já superaram o limite
da precaução. Até chegarem a configurar, de modo nada escondido, uma
incompreensão estrutural do pontificado de Francisco por parte de altos responsáveis da Cúria Romana.
E devemos nos perguntar: o
pontificado de Francisco – junto com o de João XXIII – pode sofrer um mal-entendido tão
grave justamente por parte do órgão que deveria servi-luz com maior zelo? E o
prefeito da Congregação, que reivindica essa autonomia do bispo de Roma, pode
ter a pretensão de falar em nome não digo da Igreja ou da Cúria Romana, mas da própria
Congregação que preside?
Acredito que a reforma da Cúria
deverá se ocupar com urgência desse clamoroso mal-entendido. A maturidade
eclesial, que permitiu que se reconhecesse Francisco como papa desde as suas primeiras
palavras, também deve poder ter acesso aos sagrados palácios. E tem-se a sensação
de que muitos tons e muitos temas do Vaticano II soariam, naquelas salas, como palavras
totalmente novas.
O pressentimento que
imediatamente reconhece Francisco como papa é filho do Vaticano II, enquanto o
ressentimento em relação a ele parece justamente o fruto de um estranhamento
estrutural ao Vaticano II.
Esse “estranhamento estrutural ao
Vaticano II (et quidem a Francisco)”
que habita a Cúria Romana deve ser remediado.
Especialmente pelo fato que a Congregação para a Doutrina da Fé não tem de modo algum a tarefa de impor uma velha
estrutura teológica ao
pontificado de João XXIII ou de Francisco, mas deve aprender e servir uma nova
estrutura teológica, que, de João XXIII a Francisco, soube reformar a vida e a
ação eclesial. E deve fazer
isso com o devido pressentimento eclesial e sem nenhum ressentimento curial.

Andrea Grillo
(NR.
ampliado, tendo em conta o original citado abaixo: Come se Non: Francesco è papa:
presentimento e risentimento)
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