Um depoimento passados 50 anos
Meu 1º de
abril de 1964
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Na data do golpe militar, eu participava
em Belém (PA) do congresso latinoamericano de estudantes. Nunca havia
vivido um golpe e, muito menos, uma ditadura. Meu pai, no entanto, sofrera
sob o Estado Novo de Vargas, padecera prisão, e se vira obrigado a deixar o
Rio e retornar a Minas ao assinar o Manifesto dos Mineiros.
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Na capital paraense as notícias chegavam
confusas e difusas. Pelas ruas, viaturas militares. Lideranças estudantis de
outros países do Continente, já acostumadas a quarteladas, preferiram
dissolver o congresso. Foi o salve-se quem puder...
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Como membro da direção nacional da
Ação Católica, eu estava hospedado na residência do arcebispo Dom Alberto
Ramos, a convite de seu bispo auxiliar, Dom Milton Pereira. Este era
progressista; o outro, conservador.
Na noite do 1º de abril, vi na TV o
arcebispo dar loas à Virgem de Nazaré por livrar o Brasil do comunismo, e
sugerir que entre seu
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clero havia quem sofresse influência marxista... Dom
Milton aconselhou-me buscar refúgio fora dali. Fui para a casa de Lauro
Cordeiro, militante da JEC (Juventude Estudantil Católica). Ali, de ouvidos
colados ao rádio, tentávamos avaliar o que ocorria no Sudeste do país. Jango
fora deposto e buscara exílio no Uruguai.
Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos
Deputados, assumira a presidência da República sob tutela dos militares.
Estes impunham novas eleições presidenciais a 11 de abril, pelo voto apenas
de membros do Congresso Nacional que ainda não haviam sido cassados.
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Mas... cadê a resistência de toda
aquela multidão que aplaudira Jango no megacomício de 13 de março, no Rio?
E a militância do Partidão, onde se enfiara? A esquerda não bradava ser
capaz de mobilizar milhares de trabalhadores em caso de ameaça de golpe? Por
que as tropas comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho vieram de Minas
ao Rio sem se deparar com nenhum empecilho?
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Nossos sonhos libertários se derretiam
como os saborosos sorvetes da Tip Top, a mais famosa sorveteria da capital
paraense. Após nove dias esperando a poeira baixar, decidi retornar ao Rio,
onde morava.
Minha passagem aérea tinha sido cedida
por Betinho, então chefe de gabinete do ministro da Educação, Paulo de Tarso
dos Santos. Deparei-me com a agência da Varig repleta de pessoas afoitas por
viajarem. Ao ser atendido, fui informado de que "estão canceladas todas
as passagens de cortesia emitidas pelo governo anterior”. Sem dinheiro, me
senti desamparado.
Na capa da passagem (outrora os bilhetes
aéreos vinham encadernados) havia o carimbo de "Cancelado”. Rasguei a
capa e estendi-a ao funcionário que avisava não ter mais assento vago em voos
diretos para o Rio, a menos que o passageiro fizesse escala no Recife.
Consegui embarcar.
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Cheguei à capital pernambucana a 10 de
abril, dia da posse de Dom Helder Câmara como arcebispo de Olinda e Recife.
Ele havia sido o responsável pela minha transferência de Minas para o Rio e
cuidava da manutenção do apartamento das direções da JEC e da JUC
(Juventude Universitária Católica).
Talvez por captar minha aflição, Dom Helder, após
a missa de
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posse, deixou a recepção por alguns
minutos para ouvir o relato do que eu presenciara em Belém. Em seguida,
embarquei para o Rio, tomando assento ao lado de Dom Cândido Padin, bispo
auxiliar do Rio e assessor nacional da Ação Católica.
Ao aterrissar no aeroporto Santos
Dumont, o piloto avisou que todos deveriam permanecer a bordo, pois a Polícia
Federal entraria para conferir a identidade de cada passageiro. Passei a Dom
Padin todos os documentos do congresso de estudantes, temendo que fossem
considerados subversivos. Ele os escondeu dentro do hábito beneditino.
Ao ingressar na aeronave, os policiais
avistaram a figura episcopal: "O bispo pode desembarcar”, disseram.
Todos os demais fomos identificados e revistados. Desembarquei ileso.
Na madrugada de 5 para 6 de junho de
1964, o apartamento da direção da Ação Católica foi invadido por agentes do
CENIMAR (Centro de Informações da Marinha). Fomos todos arrastados para o
Comando Naval, no centro do Rio, e depois encarcerados no quartel dos fuzileiros
navais, na Ilha das Cobras.
A ditadura me atingira na pele, pela
primeira vez, para mais tarde me prender por quatro anos (1969-1973) e cassar
por dez meus direitos políticos.
Frei Betto é escritor, autor de
"Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira”
(Rocco), entre outros livros.
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