Frei Bento Domingues. “O sexo não é só procriação. A relação entre um homem e uma mulher não é só para ter filhos”
.
Por Rosa Ramos – publicado em 13
Out 2014
O frade dominicano continua a ser
uma voz incômoda na Igreja e não tem pudor em dizer que o sexo não serve só
para procriar. Trouxe a Teologia para os jornais, há mais de 20 anos e
numa época em que a Igreja ainda andava às voltas com o debate sobre a evangelização
nos meios de comunicação.
Frei Bento Domingues fez 80
anos em agosto e continua a ser uma voz incômoda no clero português.
Defende a ordenação de mulheres, a comunhão de divorciados e não tem pudor
em afirmar que o ser humano é sexual. “Somos sexo em tudo”, diz.
Recentemente foi homenageado na
Gulbenkian, lançou mais um livro com as crónicas que assina no “Público” desde
1992 e, apesar de ser frade dominicano a viver num convento no Alto dos
Moinhos, não se esconde atrás da clausura. A conversa com o i começou pelo
sínodo que está a acontecer no Vaticano: bispos de todo o mundo debatem até dia
19 as novas formas de família e a sexualidade.
O monge cronista não tem medo de
afirmar que “o sexo não é só procriação” e, pelo meio, critica os interesses
instalados na política e no mundo empresarial: “Isto não é mundo que se
apresente”.
VEJA A ENTREVISTA
A Igreja está a debater a realidade
das novas famílias. O que poderá sair, em concreto, deste sínodo?
Há um efeito muito concreto que já
teve: dar a palavra.
Ouvir os católicos?
Sim. É evidente que o modelo é
coxo, porque a reflexão está centrada só nos bispos e foram convidadas poucas
famílias. Mas só o facto de existir receptividade para abrir a discussão já é
positivo. Há muitas coisas, sobre a ética sexual e reprodutiva, que estão
entorpecidas e encalhadas desde Paulo VI. E que fazem com que os cristãos e a
própria Igreja deixem de ter algo a dizer sobre um domínio essencial da vida
humana que é a sexualidade. É preciso que a Igreja faça uma redescoberta no
campo da sexualidade.
Concorda com a comunhão de
divorciados?
Claro que sim. Então podem ir à
missa, mas não podem comungar? É como se eu convidasse uma pessoa para jantar –
porque o modelo de eucaristia que Jesus escolheu foi uma ceia, é essa a
simbólica da eucaristia – e não a deixasse comer. Isso não faz qualquer
sentido.
Mas há a quebra de um compromisso
que, segundo a Igreja, seria para toda a vida.
Muitos defendem que se rompeu uma
aliança. Mas há situações irreversíveis, pessoas que já não voltam ao
companheiro anterior porque não é possível e que entretanto refizeram as suas
vidas. Essas pessoas, agora, não precisam de ser alimentadas? A fé e a
caminhada delas não necessita de ser acompanhada?
No Evangelho de São Mateus lê-se
que o que Deus uniu não pode ser separado pelo homem.
Olhe lá uma coisa… a eucaristia,
desde o começo, não é um pedido de perdão? A própria consagração não é pela
remissão dos pecados? Chega-se ao pai nosso e não se pede perdão e as pessoas
não se reconciliam? Qual é a palavra que, na Bíblia, é mais importante para
Deus? É a misericórdia. Deus manifesta o seu poder pelo perdão e pela
misericórdia. Jesus foi criticado, no seu tempo, por atender as pessoas que
tinham estragado as suas vidas e por andar com aqueles que estavam
classificados como pecadores. É com eles que Jesus come.
Relativamente aos homossexuais, a
Igreja defende que devem ser acolhidos, desde que sejam celibatários e não
pratiquem a homossexualidade. Esta concepção poderá mudar?
Tem-se dado alguns passos. Ainda me
lembro, e não foi assim há tantos anos, de os homossexuais serem clandestinos.
E não era só na Igreja, era na própria sociedade. Cheguei a atender pessoas, na
confissão, angustiadíssimas. Julgo que também neste campo a Igreja precisa de
dizer o que é autenticamente humano e acolher bem as pessoas.
Mas que não se faça da
homossexualidade um cartão-de-visita. Disso eu não gosto. Essas coisas do
orgulho gay e afins. O orgulho que deve existir é o de sermos humanos uns com
os outros. Uma outra coisa que me parece importante é a questão das uniões de
facto. Todos os padres que trabalham nas equipas de preparação do matrimónio
sabem que a maioria dos casais já vive em união de facto antes do casamento.
Essas pessoas estão em pecado?
O casamento é uma realidade que vai sendo – o gerúndio é propositado – e há um
momento em que o casal decide fazer a grande festa do grande compromisso. Estas
questões são fenómenos das sociedades. E às vezes até há muitos divórcios
porque não houve uma descoberta verdadeira antes do matrimónio e a seguir ao
casamento as pessoas percebem que não funciona. Viver juntos não é garantia de
que o relacionamento depois bata certo.
Mas a Igreja e os cristãos - porque a Igreja são os cristãos,
servidos e ajudados pela hierarquia - tem de debater estas novas realidades.
Sem tabus. A Igreja não pode ser um conjunto de tabus. Muitas pessoas
fazem determinadas coisas porque dizem que são um mandamento de Deus. Mas Tomás
de Aquino disse: se eu faço
uma coisa só porque ela foi mandada por Deus, talvez eu corra o risco de estar
enganado.
Talvez não seja Deus a mandar,
talvez tenha sido eu a inventar. Eu só sou livre e verdadeiramente pessoa
humana se tiver consciência de que faço uma coisa porque compreendo que ela é
boa e evito outra porque percebo que é má. Jesus
resumiu, aliás, todos os mandamentos em dois: amar a Deus e ao próximo.
O Papa Francisco escreveu também
sobre a hierarquia das verdades.
Sim. É preciso compreender, mesmo
nos nossos credos e catecismos, o que é
principal e o que é secundário. Ora o que tem acontecido é que o
secundário tem ocupado o espaço todo.
Quando falava, há pouco, da
necessidade de a Igreja fazer uma redescoberta da sexualidade, queria dizer
exactamente o quê?
Todos os homens e mulheres são
sexuais e o episcopado também nasceu de famílias. O problema é descobrir a
importância da sexualidade na vida humana. O sexo não se trata só de
procriação. A relação entre um homem e uma mulher não é só para ter filhos.
Então não há nada de errado com o
prazer?
O prazer é essencial à vida humana.
As pessoas cozinham bem porquê? Para terem prazer naquilo que comem. A questão
do prazer é essencial à vida humana. Outra coisa completamente diferente é a
anarquia dos sentidos.
Uma sexualidade desordenada.
Anárquica. Isto agora apetece-me,
dá-me prazer e eu faço, mesmo que fazê-lo implique uma desgraça para a outra
pessoa. Isso é egoísmo, não é prazer. E esse egoísmo pode existir na sexualidade:
quero que o outro me dê prazer, mas não quero dar prazer ao outro. É dominação.
O prazer é a comunhão de toda a
sensibilidade, mas a sensibilidade humana é também intelectual. Não é um afecto
desligado. O ser humano é todo ele sexual. Somos sexo em tudo. As mulheres de
uma maneira, os homens de outra e os dois para serem a alegria um do outro.
Essa descoberta, redescoberta do
valor da sexualidade, tem de ser feita. Não podemos andar a olhar para a
relação sexual como um pecado. Nós não somos anjos. E o problema da sexualidade
é um problema de antropologia. É o descobrir do ser humano nas suas múltiplas
facetas. Não podemos pensar no prazer só em termos de pecado.
O que diz aos jovens católicos que
lhe confessam que são sexualmente activos apesar de não serem casados?
O que é que lhes hei-de dizer? Não
vou dar lições. O problema não é esse. O problema é perceber se o jovem ou a
jovem têm uma vida sexual desorganizada, se andam a magoar outras pessoas, a
fazer promessas que depois não cumprem. Aí, sim, está o pecado. O pecado na
sexualidade, em jovens ou em adultos, é muitas vezes as pessoas servirem-se da
sedução para enganar o outro e ter apenas umas horas de prazer.
A ideia de virgindade no casamento
está, portanto, ultrapassada?
Não é só ultrapassada. O problema é que se fez da virgindade, que é uma
questão biológica, um problema ético. A moral não é um tratado de fisiologia
ou biologia. Uma das coisas que eu acho que a Igreja tem de rever é ajudar os
casais, os jovens e os grupos a compreender uma coisa simples: tenho de ser responsável pela minha vida sexual.
Faço sexo para dominar o outro ou
para encontrar uma pessoa para fazer caminho com ela? Porque, às vezes, as
pessoas tentam e não calha (não dá para
– N. do Editor) ficarem
com essa pessoa. Mas ninguém deve sair magoado disso. O que eu julgo que é
falta de ética são as conquistas apressadas e egoístas: acho gira aquela miúda
ou aquele rapaz e vou passar uns tempos com ele ou com ela só para me divertir. Isto é que é necessário evangelizar.
Mas a questão da virgindade é
importante para a Igreja. Jesus, diz-se na oração, foi concebido sem pecado.
Sim, mas repare que no Evangelho
isso não é dito. O que os evangelhos da infância pretenderam transmitir é a
ideia de que se este homem foi tão excepcional na sua vida adulta, essa
excepcionalidade era de nascença. E construíram-se narrativas. Mesmo as
genealogias são teológicas, são interpretações. Para no final se concluir que
Jesus é fora de série.
E que Maria é, também, fora de
série.
Maria é descoberta depois. E
tiveram de se encontrar narrativas. O pior que
aconteceu aos evangelhos da infância foi transformá-los numa questão biológica. Quando o que queriam dizer é que Jesus
não era mais um na série humana. Era tão de Deus que foi logo um fruto do
Espírito Santo. Mas as pessoas fizeram leituras hermenêuticas desses textos de
tipo biológico. A linguagem toda dos evangelhos é uma linguagem simbólica, não
é uma linguagem factual. Há factos, histórias e interpretações simbólicas.
Então Maria e José tiveram sexo?
Podem ter tido ou não. Para mim, se
tiveram não há problema nenhum. Maria aparece como uma mulher totalmente
dedicada a Jesus e que não o entende. Teve de fazer muitas transformações na
sua vida, de entrar na loucura do seu filho e aparece, também ela, no meio dos
discípulos à espera do Pentecostes. Maria tem de se tornar cristã, discípula do
seu filho. Nos evangelhos da infância não é assim… Maria vai-se habituando à
loucura do seu filho.
Esta é uma imagem que acontece
também nos textos do novo testamento com as mulheres. As mulheres nos
evangelhos nunca pedem nada e acompanharam os discípulos quando começaram a
andar junto da cruz, foram ao sepulcro fazer as celebrações que se faziam aos
mortos e é a elas que Jesus aparece.
Mas na Igreja o papel das mulheres
é varrer e pôr flores.
É o grande problema. Porque é que
as mulheres não podem ser padres e bispos? Como houve estas sociedades
patriarcais ao longo dos séculos… A luta das mulheres conseguiu muitas
transformações na sociedade, mas na Igreja isso não aconteceu porque se disse
que era contrário ao mandamento de Deus. E não é nada! A mudança de
mentalidades é difícil.
A vida humana é uma vida longa. A
nossa vida, individualmente, é que é muito curta. O que eu acho é que cada
geração deve abrir novas possibilidades às seguintes e não fechá-las. Há pessoas
que querem sempre fechar o caminho: isto é irreformável, isto é dogmático, isto
não se pode mexer. Ao fim e ao cabo isto é cortar a liberdade a Deus e
dizer-lhe: ou passas por aqui ou não passas.
Nunca levou um puxão de orelhas da
Igreja por pensar assim?
Nunca tive qualquer problema com o
episcopado português. Só tive problemas com o cardeal Cerejeira, que não me
deixava pregar. Mas depois do 25 de Abril nunca mais voltei a ter problemas.
Mas é um teólogo reconhecido e já
escreveu muito. Não seria natural que, nesta altura da sua vida, tivesse um
cargo de grande responsabilidade no episcopado português?
Não. E é uma coisa que nunca me
passou sequer pela cabeça. Nunca gostei, quando tive responsabilidades
académicas e a outros níveis. Aborrecia-me. Não tenho nada contra a
responsabilidade, mas incomodava-me aquela ideia que as pessoas formam: aquele
é superior, manda em nós.
E há uma coisa que detesto: o
carreirismo. Por
vezes vejo clero mais jovem a fazer coisas para ver se trepa (sobe de posto – N. do Editor). Eu
acho isso ridículo. Jesus já dizia que os que governam as nações oprimem-nas e
ainda querem passar por benfeitores. Devemo-nos pôr ao serviço uns dos outros.
Não tenho nada contra os bispos ou os cardeais, só quero que os seus cargos sejam para servir. E não sinto apetite, gosto ou
competência por esses lugares.
Acha que nunca foi convidado por
ter determinadas opiniões?
Eu sinto que por pensar assim há
quem entenda que não posso pregar nesta paróquia ou não posso ir a este sítio.
Mas isso não me causa problema nenhum. Se não querem, não querem. Deveras! Não
passa mesmo por mim. Há tempos fizeram-me uma homenagem e eu fico sem saber
lidar com essas coisas. Acho que a pessoa que gosta de ser lisonjeada está
estragada.
Apesar de escrever na imprensa há
mais de 20 anos, diz que não gosta de escrever. Porquê?
É verdade, não gosto de escrever.
Gosto é de ler e gosto de debater. Mas as crónicas foram uma grande aventura.
Muitas pessoas interpretavam-nas como uma espécie de homilia de domingo.
Os pregadores dos tempos modernos
precisam desta ligação aos media?
Quando comecei não havia muita
coisa. O padre Rego tinha feito uma coisa pequena no “DN”. E o padre Rui
Osório, no Porto, que era jornalista, escrevia às vezes no “JN”. Havia já
muitas iniciativas em França, na Alemanha… uma certa descoberta dos meios de
comunicação enquanto veículos de fé.
Mas o problema é que ligada à
pregação vem aquela ideia de que… aí vem o sermão. Uma espécie de arte da moraleja,
estar sempre a insistir no que é proibido e no “deves fazer isto” e “não deves
fazer aquilo”. A pregação não é isso.
O que é então a pregação?
Não é isso nem é propaganda. É dar
voz aos anseios das pessoas e àquilo que, na tradição cristã, interpretamos
como o projecto de Jesus. Dar sentido à vida através dele. O problema da
pregação é assumir, em cada época, segundo os povos e as culturas, esse
projecto de Jesus que, no fundo, é fazer do mundo uma fraternidade.
Se Jesus vivesse no nosso tempo
escreveria nos jornais?
Claro. Pregaria em todo o lado.
Embora… repare… nós não temos nada escrito por Jesus. Temos escritos de
representantes de comunidades. É uma escrita plural. São Paulo tinha mais essa
vocação de jornalista, de comunicação, estava sempre em ligação com as
comunidades. Escrevendo, escrevendo…
Jesus foi o
projecto de dizer: é preciso mudar. Este mundo não é mundo que se apresente.
Começou a pregar, anunciando que até então reinava a opressão das pessoas e que
era preciso o reinado da libertação das pessoas. É este o projecto.
A nossa sociedade precisa de um
novo profeta?
Nós temos imensos profetas! A
profecia de que precisamos, hoje, é a da
dignidade humana.
Em que sentido?
Vivemos num país em que faltam
crianças, em que os mais velhos, que sustentavam as famílias, viram os seus
rendimentos cortados… O primado que existe no mundo contemporâneo, e não é só
em Portugal, é o primado
da finança e não o do bem-estar das pessoas.
Sem finança não há bem-estar.
Não. Todos os dias ouvimos falar de
como as coisas funcionam ao nível da banca e no mundo dos negócios, os milhões
que se ganham e com que se mexe. Não se ouve falar dos milhões de pessoas que
estão na miséria.
Dignidade humana é perceber que o
ser humano tem o direito e o dever de poder viver, sob o ponto de vista do
ensino, da saúde, da solidariedade, da constituição da família. E quem tem os
meios tem também o dever de ajudar os outros e de construir um país em que o
bem de todos venha antes do bem só de alguns magnatas.
O que quer dizer é que existem
recursos e que a crise é de valores ?
Crise de valores e de juízo. As
pessoas andam sempre a falar da austeridade e da falta de recursos, mas o
problema, creio eu, ainda não é esse e nunca será. O problema é que os interesses financeiros vivem
numa lógica que é: que lucro é que eu posso ter com isto? Em
vez de se pensar no lucro que a comunidade pode alcançar.
Em qualquer decisão económica,
financeira ou política deve pensar-se primeiro na dignidade humana e no bem
comum. E a política é o mais importante, porque é o que olha por todos. Ou
deveria olhar.
A política de hoje só olha ao
poder?
O que é o poder? O verdadeiro poder
é as pessoas terem saúde, poderem estudar, investigar, terem recursos para
levar uma vida digna. A democracia é para dar poder a todos. Mas é algo sempre
imperfeito e que é preciso ir sendo corrigida segundo os resultados. A árvore
aprecia-se pelos frutos e muitas decisões políticas que se tomam devem ser
corrigidas consoante o fruto que deram às populações.
Agora em Portugal… esta discussão
sobre o SNS, o Estado Social… O que se deve discutir é soluções. Onde estão os
recursos? Onde vamos investir? Na educação? Na investigação? Ou naquelas coisas
fantasiosas que dão lucro só a determinadas empresas e o resto não conta? É
necessário discernimento político. Saber discernir prioridades e perceber onde
podemos encontrar meios.
Há decisões que não competem só aos
agentes políticos nacionais.
Então é preciso trabalhar no
diálogo político. Há pouco falava da questão dos profetas dos nossos tempos.
Profeta é, no sentido bíblico, o Homem clarividente. Estamos perante uma
situação em que em vez de as pessoas se calarem e fecharem os olhos é preciso
parar e dizer: quais são as causas da actual situação? E como poderemos
inverter este caminho? Diz-se que não existem alternativas. Como é que se sabe que não há? Já se
experimentou?
O profeta é alguém que interpreta
os sinais dos tempos. Há um problema de falta de clarividência, com os
interesses de grupos, de empresas a serem mais importantes no lucro que alguns
vão ter. Mas a prazo não vão ter lucros, vai ser um desastre.
Quem faz esse papel profético em
Portugal?
Actualmente há uma carência
profética, em parte porque as igrejas se retraem muito para que
não se diga que se estão a meter no que é da política. Quando a Igreja, hoje,
para ser profética, não pode desvalorizar a política, a economia, a finança.
Tem de servir de mediação, dar direcção, ajudar a perceber que há caminhos que
levam ao desastre e outros que ajudam a tornar a vida mais feliz.
Mas, ainda assim, vai havendo essas
vozes proféticas. Há
um profetismo enorme nos bairros… as pessoas que se ocupam daqueles que não têm
nada para viver, os que se organizam civilmente, os voluntários que servem refeições
a quem não tem o que comer. Há vozes, pessoas que compreendem que se pode fazer
de outra maneira e que se substituem ao Estado, que tinha essa obrigação. Isto
é um profetismo de bases, por assim dizer. Mas há
vozes. O Papa Francisco apareceu como uma voz mundial.
Como é que um frade olha para os
casos de corrupção que vão sendo descobertos?
Há bocado falou do problema dos
valores. Esse problema não é abstracto. Cada pessoa é educada para saber dizer
o que mais conta na vida? Kant dizia
que o ser humano não tem preço. Só tem valor. Não pode ser um
meio para ser algo melhor do que ele. As coisas é que têm de estar ao seu
serviço. As pessoas corrompem-se porque têm apetites desgarrados. Pensam que
fazendo este ou aquele golpe vão ser ricos e ser rico, hoje, significa tudo.
É esta ideia louca de que sendo
rico tenho todas as hipóteses (possibilidades
– N. do Editor). E
nunca penso no importante, que é: como devo fazer para desenvolver as minhas
capacidades intelectuais, afectivas, relacionais? Se desde a escola, desde a
família, se incutisse nas crianças a honestidade, o sentido do dever, da
solidariedade, a importância do desenvolvimento das capacidades individuais
para criar um ambiente bom para todos…
Mas o pensamento, hoje, é outro: como é que eu posso ser melhor do que o outro? Como posso ir à frente de toda a gente? Estamos a criar uma cultura
tecnológica em que as crianças são desde logo habituadas a lidar com ipads, mas
que não sabem olhar para a natureza, para o mundo e para os outros. E esta é a
maior corrupção: a corrupção das relações humanas. Os pais com os filhos, o
marido com a mulher, violência em casa. É-se corrupto porque se tem a
inteligência e os desejos e gostos distorcidos.
Mas é mau ter desejos?
Não é mau ter desejos, desde que se
deseje aquilo que vale a pena ser desejado. E
a primeira coisa que vale a pena desejar é o nosso desenvolvimento com o
desenvolvimento dos outros. Muita gente diz- -me que isso é conversa fiada.
Mas… E assim como está o mundo… Está bem? Isto não é mundo que se apresente, e
como dizia São Paulo, não nos devemos conformar como o mundo está.
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